Michelle Portela
Três perguntas para Elisa Maia, cantora negra manauara, produtora cultural e uma das organizadoras do festival Até o Tucupi de Artes Integradas, idealizado e executado pelo Coletivo Difusão, um movimento cultural organizado de Manaus. Chegando à sua décima edição, o festival começa nesta segunda-feira, 20 de novembro – Dia da Consciência Negra, com o show Personalidades Negras, no Teatro Amazonas, a partir das 20h.
COMUN – A que você credita a ideia de que não existem negros na Amazônia?
Elisa Maia – O Amazonas passa por um processo profundo de negação da identidade, tanto negro quanto indígena. No início do século 20, negros e índios formavam maior parte da população no Estado, o que pode ser comprovado por meio de documentos históricos, como jornais e censos da época, uma história que começa a ser recontada por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O que ocorreu foi que os ciclos econômicos apagaram essa memória, quando se fortaleceu a ideia de uma estética branca e europeia. Foi um processo de roubo dessa identidade. Tivemos então um processo que abafou essa vivencia negra e indígena. Posso citar como exemplo a minha experiência, eu sou negra por parte de pai, baiano, e minha mãe é amazonense branca, de origem portuguesa. Sempre foi bastante desgastante ficar afirmando que a gente era daqui de Manaus, porque sempre perguntavam se a gente era da Bahia, e como ocupamos alguns lugares privilegiados, como escolas particulares, minha família também passou pelo processo de achar que era minoria na cidade. Recentemente o Coletivo Difusão desenvolveu atividades em escolas da periferia da cidade e percebemos a prevalência de crianças negras em sala de aula. Portanto, posso afirmar que o que existe é um processo que exclui os negros dos espaços, seja quais forem. Mas ainda surpreende a forma como Manaus se sente branca.
COMUN – O que podemos entender por consciência negra?
Elisa Maia – O Dia da Consciência Negra é uma conquista do movimento negro, já que a data da Abolição da Escravatura não nos contempla, por conta do processo histórico. O Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão e estava sofrendo sanções econômicas por isso, assim, a abolição foi um movimento tardio e estrategicamente pensado pela monarquia. Em busca de uma data mais justa, que representasse a luta dos escravos, o dia da morte de Zumbi dos Palmares foi escolhido para lembrarmos a nossa resistência. Não chego a dizer que é um dia de comemoração porque ainda temos muito racismo presente no cotidiano e muitos avanços a conquistar. Então, este é um dia de reflexão: ainda temos uma desigualdade gritante, jovens negros são os que mais morrem e as mulheres negras sofrem mais violências de gênero, como no Sistema Único de Saúde (SUS). É convidar a população a pensar a questão racial.
COMUN – Manaus é uma cidade racista?
Elisa Maia – Manaus é racista tanto quanto o Brasil é muito racismo. Se a gente não reconhece que o racismo é estrutural a gente não pode falar sobre ofensa, que é um problema secundário, por exemplo. O que impacta mesmo é o racismo que impede o negro de chegar nos espaços, como não conseguir chegar à universidade, não estar em cargos de chefia e o maior índice de mortalidade ser justamente o da população negra. Então, a gente tem uma questão que coloca a população negra em extrema vulnerabilidade. E isso falo como uma mulher negra em posição privilegiada porque ser artista faz com que as pessoas queiram ouvir o que tenho a dizer. É um privilégio muito grande hoje poder viver da minha arte porque, antes de tudo, tenho um lugar de fala respeitado e reconhecido na minha cidade.