Ivânia Vieira*
Protagonizar é opor-se ao imobilismo. E, “freirianamente”, significa rejeitar o assujeitamento como condição histórica da vida. A mulher, na Amazônia, e não somente nesta parte do mundo, faz desse pensamento esteios da construção cotidiana da vida dando ao viver a roupa entranhada de resiliência, por vezes ignorada por nós, na academia, espaço ainda encharcado de um conhecimento moldado aos ciclos eurocentrista e sãopaulocentrista de ver, sentir e agir no mundo.
A ideia em torno do protagonismo e mercado de trabalho é parte, em alguma medida, desse artificio que impõe à mulher a responsabilidade e o dever de ter êxito dentro da caixinha do êxito patriarcal, masculinizado e masculinizante. Os parâmetros onde a escala de valores sobre questões relativas ao conceito de sucesso e fracasso, competência e incompetência, habilidade e inabilidade está conformizada, são parte do mundo masculino ocidental. Acionados historicamente para estabelecer os espaços de participação, de representação e de poder, esses instrumentos atuaram para, primeiro embasar a noção de veto à mulher no espaço público e, depois, a de enquadramento dela em filtros estreitos de visibilidade por esse espaço público. Aquela etiquetada como fora desse quadrado foi e é vítima de violências de várias ordens.
Malabarista, a mulher enfrenta secularmente os processos de interdição à presença dela na vida pública. Um deles é o da diferença salarial entre homem e mulher que ocupam a mesma função, tratado como natural. Não é e exige ser desnaturalizado.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua/IBGE 2019), reúne uma série de dados interessantes como elementos da configuração patriarcal. Constata que no período 2012 e 2018, as mulheres ganhavam, em média, 20,5% menos que os homens no país. A situação se altera para cima ou para baixo de acordo com regiões e cidades. Quando a comparação salarial é feita com agricultoras, gerentes de comércio varejista e atacadista, essas trabalhadoras recebem, respectivamente, 35,8% e 34% menos que os homens. No Amazonas, o porcentual apresentado pela PNAD é de 10,9%, considerando o meio urbano.
Nos espaços de representação de poder, como o parlamento, a participação da mulher, em nível nacional e local, é baixo. O Brasil aparece na 152ª posição entre 190 países no item presença feminina no parlamento. A conquista de mandato por uma mulher na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa ou no Congresso Nacional permanece como batalha de formigas contra gigantes. O instrumento de cota de 30% para candidatura feminina no partido vive sob ameaça e controvérsia e, se constitui noutra questão das lutas das mulheres para garantir e fazer o mecanismo funcionar democraticamente em meio a realidade de uma democracia asfixiada pelo neoconservadorismo e neofascismo.
As jornadas de trabalho das mulheres, mesmo com os novos arranjos tecnológicos, permanecem em multiplicação. Com um detalhe preocupante: a demanda do mundo virtual se soma a demanda do mundo físico. Os trabalhos em casa, festejados como boa novidade no início dos anos de 1990, no Brasil, impactou profundamente a vida da mulher que se percebeu ‘operária conectada’ também em casa. Em 2018, o estudo do IBGE indica que as mulheres dedicaram, em média, 21,3 horas por semana com afazeres domésticos e cuidado de pessoas. É praticamente o dobro de horas do que os homens gastaram, em igual período, com as mesmas tarefas, 10,9 horas.
No Amazonas, onde a população feminina é superior a masculina, a pesquisa do IBGE estabelece um quadro de 742 mil mulheres fora do mercado de trabalho, e representam 52,8% da taxa de desocupação. É a quarta maior taxa do Brasil.
Os números falam e podem ser manejados em direções diferenciadas de interesse político-econômico. Para a mulher, esses números traduzem feições das lutas que estão travando, denunciam uma concepção de mundo que ignora a equidade de gênero como direito natural e condição inegociável de humanizar esse mundo em agonia profunda.
A mulher do Amazonas e da Pan-Amazônia, faz da sua batalha uma denúncia diária desse modelo de exploração, e tece nas águas, na terra, no asfalto e na floresta, a esperança de reinventar a vida deste Planeta, na porção subjetiva que se espalha tal qual o pingo da água da chuva e a faz protagonista, sob todas as ameaças, da superação da violência, pela liberdade, pelo direito de viver a diferença e, assim, completar física e espiritualmente a face da humanidade.
*Jornalista, Membro Fundadora do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas), Professora da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC-UFAM), doutora em Processos Socioculturais da Amazônia.
* Texto publicado no site da Assembleia Legislativa do Estado Amazonas – 01/04/19.
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