Juan Vicente Colares
Manaus amanheceu no último sábado, 25, numa mistura de perplexidade e consternação. A essa altura o crime ocorrido naquela madrugada já foi noticiado de forma exaustiva. Para quem não acompanhou, faço um resumo: o delegado da Polícia Civil do Amazonas, Gustavo Sotero, cometeu homicídio contra o advogado Wilson Justo Filho dentro do bar Porão do Alemão, ferindo outras pessoas com os disparos desferidos por sua arma custeada com dinheiro do contribuinte.
Diante desse fato muita gente sentenciou: “Manaus está muito violenta!”.
Não se enganem: Manaus sempre foi violenta! Mas essa violência, por muitos anos, foi praticada contra uma massa de anônimos, “Marias e Josés”, negros, índios e seus descentes, ribeirinhos, retirantes, filhos de gente sem importância, sem sobrenome de peso, sem dinheiro ou posses, moradores de bairros periféricos, gente sem rosto e, por força da violência perpetrada, muitas vezes literalmente sem voz.
A violência cometida pelos agentes do Estado – remunerados com dinheiro público – são as mais injustificáveis. Para as vítimas da violência estatal, em sua maioria oriundas dos guetos, os princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e não-culpabilidade são apenas uma distante ficção.
O resultado das diversas violências são as cenas trágicas que se repetiram centenas de vezes ao longo das últimas décadas: corpos caídos no chão, perfurados por balas, facas ou qualquer outro material contundente, e o sangue jorrado escrevendo, em manchas escurecidas, nos sulcos do chão o fim de histórias de vida de inúmeros cidadãos.
Narrando os fatos de forma rasa e explorando de forma vil as imagens de corpos inertes, jornais impressos venderam durante décadas inúmeros exemplares (hoje, alguns ainda insistem na mesma fórmula), banalizando a violência, tornando natural e aceitável, comercializando o sofrimento de muitos.
Da mesma forma a TV, com sua penetração nos lares, colaborou para trivializar a tragédia. Assim, mortes viraram pontos de audiência, que de tão recorrentes, com o tempo, perderam a importância. Não há mais espaço para o óbvio, apenas para as grandes tragédias e os espetáculos delas decorrentes.
De outro lado, programas de rádio inovaram com uma forma cretina e zombeteira de falar dos mortos e das circunstâncias que os levaram ao óbito, transformando o momento de dor de seus parentes em um stand up comedy de risos cínicos e mórbidos.
A era digital, com sua revolução tecnológica, nos apresentou a tragédia online. Milhares de smartphones compartilhando freneticamente através de aplicativos as tragédias para uma plateia sedenta por detalhes e pronta para tecer comentários baseadas em achismo e, quase sempre, carregados de preconceitos e ódio.
Numa sociedade brutalizada apenas um fato ocorrido em um lugar “diferenciado” e envolvendo pessoas “distintas” conseguiria gerar a comoção necessária para atrair a atenção da massa e é claro: vender jornais, marcar pontos na audiência e gerar visualizações na internet. Afinal, isso é o que move as empresas de comunicação, em sua grande maioria.
O homicídio cometido pelo delegado Sotero contra o advogado Justo Filho no Porão do Alemão na madrugada do último dia 25 virou o grande espetáculo da vez. Uma grandiosa ópera, com seus distintos atos, toda dramaticidade possível exposta da seguinte forma:
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Ato I – O crime foi cometido por uma autoridade da segurança pública contra um cidadão com nome, sobrenome e status social. E ocorreu num local bem frequentado, com um público que se vê como elitizado.
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Ato II – A Ordem dos Advogados do Brasil Secção Amazonas – OAB Amazonas, órgão ao qual a vítima era vinculada, começa a pressionar as autoridades estatais por justiça.
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Ato III – A Polícia Civil corporativista e ineficiente tenta proteger um dos seus, tipificando no boletim de ocorrência o crime cometido sem seus agravantes (motivo torpe e sem chance de defesa) e em tipos menos gravosos.
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Ato IV – O Secretário de Segurança Pública, frente a repercussão negativa, vem a público,por meio das redes sociais, defender a expulsão do delegado dos quadros da Polícia Civil. Afinal, 2018 tem eleição novamente.
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Ato V – O Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, mas sempre tão conivente com a violência policial contra pobres, sob pressão da mídia e da opinião pública, se vê obrigada a cumprir seu papel constitucional.
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Ato VI – Por fim, nosso Poder Judiciário (outra instituição complacente com a violência policial às classes mais baixas) fica exposta as luzes e microfones da imprensa e a pressão das demais instituições envolvidas. Objetivando manter a ordem pública e a altivez da sua imagem decide, na audiência de custódia, pela prisão preventiva do acusado.
Muitas discussões relevantes poderiam ser levantadas pela imprensa nesse episódio: indo da violência policial até a situação da saúde mental dos funcionários da segurança pública; da falta de ética nas relações sociais até a ineficiência das instituições na apuração de desvio de seus colaboradores. Cada ato da ópera criada pela mídia abriria um mundo de possibilidades para aprofundar o debate e a análise da violência enquanto fenômeno social, e o papel do estado e dos cidadãos nesse contexto. Mas todas essas possibilidades são estranguladas pelo viés noticioso do caso.
Os atos dessa ópera ainda não acabaram, outros atos ainda virão. Mas, nesse meio tempo, as luzes desse palco vão apagar e retornaremos à rotina: a morte de meros desconhecidos, com vidas desimportantes, em locais tão afastados que nem mesmo o deslocamento de um fotógrafo para registrar a cena se justifica. Afinal, a foto, mais cedo ou mais tarde, chegará por meio do whatsapp sem custo algum e numa rapidez invejável a nossos smartphones e, inclusive, às redações esvaziadas das grandes empresas de comunicação.
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