Michelle Portela
Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio, o antropólogo e pesquisador Márcio Meira defendeu a tese de que indígenas do noroeste da Amazônia enfrentam modelos de escravidão adaptados ao universo eletrônico e digital, no seu trabalho intitulado “A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico”, no Programa de Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Perpetuando o modelo de comercial de aviamento, em que “fregueses” estão sempre aumentando a sua dívida, “patrões” se apropriam de cartões do bolsa família e da aposentadoria indígena para saldar esses débitos, numa relação de remete ao período colonial.
Entrevistamos o pesquisador para conhecer um pouco mais sobre essa realidade.
COMUN – Como ocorre o “Aviamento eletrônico”?
Márcio Meira – Chamo de “aviamento eletrônico” à adaptação contemporânea do clássico sistema de aviamento, que está baseado no comércio a crédito sem uso de moeda, no qual o “patrão”/comerciante/aviador tem o monopólio de definição dos preços das mercadorias “vendidas” (sempre com ágio) e dos produtos “comprados” dos seus “fregueses” (a preços muito baixos), estabelecendo uma relação de poder e dominação, em função de um débito nunca pago ao patrão pelo freguês, o qual permanece enredado ao patrão numa eterna dívida.
Em meu estudo de caso no Noroeste Amazônico, com os povos indígenas de fala Tukano, Aruak e Maku, que resultou em minha tese de doutorado, assim como em trabalhos de outros autores sobre o tema na região e em outros rincões da Amazônia, verifica-se que tanto o velho sistema ainda persiste, como também a sua atualização através da apropriação indevida pelos “patrões”/comerciantes dos cartões magnéticos do bolsa família e da aposentadoria de indígenas e membros de comunidades tradicionais, utilizados para o “pagamento” de dívidas contraídas pelas famílias nas casas de comércio urbanas.
É muito difícil mensurar a extensão desse novo mecanismo na região, pois em geral é ocultado tanto pelos comerciantes como pelos fregueses que utilizam desse expediente, que é ilegal. Para tanto, caberia uma investigação rigorosa dos órgãos responsáveis, como Ministério Público e Polícia Federal, para constatar efetivamente sua abrangência, identificar as irregularidades e acionar judicialmente quem for comprovadamente identificado com essas práticas.
COMUN – É possível comparar o “Aviamento Eletrônico”, em nível de risco e ameaça, a quais outras práticas históricas contra povos indígenas?
Márcio Meira – Trato em meu trabalho do fenômeno do “aviamento” numa perspectiva de “longa duração”, portanto como uma estrutura dinâmica do processo colonial no Noroeste Amazônico cuja gênese está nos séculos XVII-XVIII e persiste até os dias de hoje. No caso dos povos indígenas da bacia do rio Negro, impactados pela escravidão e comércio associados ao aviamento, eles lograram atuar nesse “tempo longo” nas margens do regime de violências, conservando e renovando seu antigo sistema social regional, fator de grande relevância sociocultural e ambiental para o Brasil e os países vizinhos, no caso a Venezuela e Colômbia.
COMUN – A medida que se modernizam os sistemas de exploração contra povos tradicionais, como se comportam instituições representativas?
Márcio Meira – As organizações dos povos indígenas e de comunidades tradicionais têm denunciado e lutado contra essas arbitrariedades que violam direitos fundamentais da pessoa humana. Com base numa portaria do Ministério do Trabalho (recentemente revogada pelo governo federal em ato de grande repercussão negativa, inclusive internacional), os trabalhadores enredados na economia da dívida são caracterizados como vivendo em situação análoga à escravidão.
Exemplos de medidas tomadas diante desse quadro, foram algumas ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal, em resposta às demandas da sociedade civil, – no caso da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) -, contra o trabalho escravo nos piaçabais do município de Barcelos. Em outra frente, os indígenas conseguiram que o MDS realizasse uma investigação sobre os abusos no uso dos cartões do bolsa família de indígenas naquela região, cujo relatório foi tornado público pelo Ministério.
COMUN – Como o senhor avalia a participação do Estado Brasileiro nesse contexto?
Márcio Meira – Como referido acima, tem havido recentemente algumas ações específicas do Estado no sentido de coibir as práticas ilegais vinculadas à economia da dívida. A mais importante delas, sem dúvida, tem sido o reconhecimento e demarcação das Terras Indígenas, que embora não tenham como foco específico a questão das ilegalidades nas relações de trabalho acima referidas, por si só já inibem essas práticas.
Creio, porém, que todas as medidas até agora tomadas não foram suficientes para dar um fim a tais relações assimétricas e, em grande medida, criminosas, do chamado sistema de aviamento, diante da atual legislação brasileira. Inclusive pela precariedade dos órgãos do Estado na região, como é o caso da Polícia Federal, da Funai, e do próprio Exército brasileiro, que nem sempre recebem o apoio necessário de Brasília.
COMUN – Como sua pesquisa posiciona esse problema no atual contexto político?
Márcio Meira – Minha pesquisa procura demonstrar a persistência da antiga economia da dívida no Noroeste Amazônico, uma região de colonização antiga na Amazônia. Destaco nela, que embora marcadas pela violência, tais práticas não foram suficientemente fortes para destruir o sistema social indígena, cuja resiliência é incontestável.
Um indicador dessa resistência, para citar só a questão demográfica, são os números da população indígena nos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, indicados pelo Censo 2010 do IBGE. Ela representa, respectivamente, 33%, 59% e 77% do total. Esse fator demográfico se repete no outro lado da fronteira, pois na Venezuela, 79% da população do Estado de Amazonas é indígena (Censo de 2001) e na Colômbia, pelos dados de 2005, os indígenas representam 54% da população total das províncias vizinhas de Amazonas, Guainía, Vaupés e Vichada.
Em termos políticos, do lado brasileiro da fronteira, cabe ao Estado garantir o cumprimento da Constituição e da legislação infraconstitucional, principalmente daquelas relativas aos direitos indígenas e de preservação ambiental, como também dos direitos humanos. Para atingir tais objetivos, como já me referi, é indispensável o maior apoio aos órgãos responsáveis pela garantia desses direitos na região, assim como um diálogo permanente com os povos indígenas e comunidades tradicionais.
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